ARTIGO: QUEM MATOU MARIELLE?
JORNALISTA DELZA SCHAUN
A pergunta reverbera na minha mente e só recebe uma resposta: A mão que apertou o gatilho tem muitos braços, longos, verdadeiros tentáculos. O executor é apenas um nome a encobrir cada comprador de cocaína, vendedor de armas, político corrupto. Cada um, que se beneficia do mercado da morte, guiou a mira dos tiros que atingiram Marielle e Anderson. Traficantes, milicianos, policiais de alma corrompida, governantes roedores, não são os únicos responsáveis por cada pessoa que é baleada no Rio de Janeiro no decorrer de sete horas. Os fatores que armam a violência são de agora e sempre; são históricos, sociais, políticos e éticos. Nos anos 1800, o Rio tinha registros de 22 assassinatos em 5 dias, de pessoas vítimas de “pedradas perdidas”, de gangues dominando as ruas e piratas nos portos. 90% dos presos eram escravos. Eis que surge o Major Vidigal, que deu nome ao morro, homem violento, horror de uma classe social específica e desprotegida. Salvador da Pátria da época. No Morro da Providência, a primeira favela aparece quando os soldados, vindos da Guerra do Paraguai, ocupam a terra prometida e negada pelo Imperador. E eles foram seguidos pelas quatro mil famílias moradoras do Cortiço Cabeça de Porco, que tiveram suas casas destruídas pelo governante e também foram morar por lá. Era a política de segregação, que se perpetuou pelos anos seguintes. Entre a Abolição e a República, nada foi feito para mudar essa realidade. Aos dois grupos que já ocupavam as favelas se juntaram os negros libertos. A perseguição se consolida. A geografia define o lugar de cada um, explorados e exploradores. A força dos fracos se mostra na violência. A arma, seja ela faca, capoeira ou metralhadora, empodera quem se sente menor. Foi a arma da sobrevivência e do único protesto possível. O século virou e essas pessoas continuaram consideradas como promotores da criminalidade. A favela era Aldeia da Morte e polícia só subia suas ladeiras em último caso. Para que? Deixem que se matem os homens que não respeitavam o Código Penal, dispostos a matar por qualquer motivo ou sem nenhum. Ninguém se importa! A lei antidrogas foi promulgada na Ditadura de Vargas em 1938 para coibir o tráfico de maconha entre os africanizados, mas a cocaína era privilégio das altas rodas da Zona Sul e nelas não chegava a lei. A política habitacional sempre se voltou para manter essas duas castas bem separadas. Mas já não dava. Os 60’s trouxeram estudantes e intelectuais para os morros, onde achavam seus baseados. A Ditadura Militar juntou presos políticos e criminosos comuns nas mesmas celas. Uns aprenderam com os outros. A bandidagem saiu graduada no assistencialismo social, que foi aplicado nas comunidades para conquistar aliados. Novas gerações nasciam e as crianças cresciam deslumbradas com o poderio daqueles “heróis” donos de tudo, meio pais, meio irmãos mais velhos, referências para seus futuros. Tráfico, poder, armas, pobreza… E nada do Estado. Quem era esse Estado, distante e só para os cariocas do asfalto? Esgoto? Escolas? Postos de saúde? Transporte? Segurança? Nada disso chegava das autoridades. Séculos se repetiram em um looping desastroso de governos medíocres e desumanos. Poucos os que conseguiam passar pelos donos do morro sem se tornar um dos 622 mil presos do Brasil de hoje, ou dos milhares de mortos nesse processo. A vida humana passou a valer menos que um relógio ou dez reais. Foi necessário que esses longos braços atingissem uma mulher negra, parlamentar, defensora dos favelados, para que em menos de 24 horas se montasse uma mobilização nacional. Espontânea em muitos, aproveitadora em tantos. Todos precisaram se manifestar, por seus próprios motivos, nem sempre nobres. Inclusive eu. Vestir a camisa do luto, usar a hashtag #SomosTodosMarielle foi a ordem do dia por todos os lados. No calor da emoção, parece que tiramos algo bom da tragédia e vamos reagir, sair da letargia brasílica. Morre Marielle, mas nascem milhões de Marielles, somos todos os que tomaram as ruas, os microfones e as redes sociais com indignação e desejo de justiça, de mudança. Diferentes vozes contra tudo que está errado no Brasil, mas que parece se concentrar no Rio de Janeiro. A Mártir Marielle, vítima de um violento crime político, cumpre sua missão de levantar a Nação… Ou não, como diria o triste Caetano em seu quarto frio. DELZA SCHAUN 15-3-2018